Lígia Mary


Lígia Mary

Quando penso em Lígia Mary é impossível não pensar que naqueles anos eu queria transformá-la numa modelo de passarela. Mas ela não tinha o tamanho da Gisele. Mesmo. Era uma mulata mignon talvez um pouco mais baixa que a média de altura da mulher brasileira. O fato é que eu a considerava baixinha (assim justifico que a chamava pela alcunha no diminutivo, para mim Lígia Mary era a minha Neguinha). Bonita e um pouco desengonçada mas dava gosto de ver. Era pelo menos uns 20 anos mais nova que eu, mas eu a adorava. Ela sabia disso.

Ela tinha um sotaque engraçado. Ela fingia ser carioca e se apresentava orgulhosa:

– Muito prazer Lígia Mary _ ela falava forçando nos “erres” e quando falava, sempre tentava finalizar as palavras com “X” para fazer charme.

Era um domingo de carnaval, entrei com uns amigos para almoçar num dos poucos bares abertos daquele bairro do Recife. Quase 4hs da tarde e eu ocupado com o cardápio porque meus amigos insistiam que a carne seca desfiada não combinava com arroz à carbonara. Eles insistiam que minha escolha era uma coisa tipicamente paulista, e que eu estando a passear pelo carnaval do Pernambuco deveria pedir algo mais regional, por assim dizer. Nós estávamos rindo quando olhei pra frente e a vi. Três mesas adiante e sentada ao lado de uma família barulhenta com 2 crianças ainda com fantasias de carnaval, lá estava ela, Lígia Mary, doze anos depois. Almoçava com um homem barbudo de traços rudes.

Quando penso que lhe faltava o tamanho da Gisele é porque creio que faltava a ela também uma oportunidade qualquer. Faltava alguém que apostasse nela, que a deixasse à altura de uma grande modelo _ se é que você me entende. Era uma dessas figuras icônicas que mereciam um espacinho qualquer em algum programa (não só de TV) que acolhesse Lígia Mary. Imagina uma mulher negra de cintura fina, em seus 19 anos que andava lindamente nos saltos e decorou uma infinidade de palavras bonitas, que andava cantando sambas-enredo pelas ruas do Grajau em São Paulo, que conseguiu traduzir o sotaque carioca, ou melhor, ela fazia sua versão do sotaque carioca para a galera de sampa.

Costumava achar engraçado quando ela se apresentava. Fazia uma pronúncia bizarra:

“- Prazer Lígia Méuri”.

Eu um dia falei a ela que podia melhorar a pronúncia. Que podia dizer Méri, que era uma pronuncia aproximada para Mary, mas para ela parecia impossível articular a pronúncia do “R”, então ela me respondia que foi assim que ela ouviu num filme. Então eu ria e eu aceitava. Outra coisa engraçada era quando ela dizia ser carioca do Méier. Quando perguntei se ficava na zona norte ou sul do Rio. Não sabia. Ela respondia

“- não importa. Olha só como é chic ser carioca do Méierrr”.

Nossa amizade começou neste dia em que revelei que sabia que sua origem era uma farsa. Foi quando questionei se não era melhor dizer um bairro mais conhecido como Ipanema ou Copacabana. E ela respondeu:

“- Não, menino. Acredita em mim. Falar como eu falo que sou a Lígia Méuri carioca do Méier aqui nessas quebradas. É chic. Muito chic. Eu juro.”

Ela era demais. Um pouco desajeitada sim, bumbum largo um pouco desproporcional “ max tenta andar de salto agulha nas ruax do Grajau, tenta!”

E o jeito de andar? Aquilo não era rebolado, Lígia Mary requebrava ao andar. Ia sempre cantarolando pela rua. Safadinha no ponto certo. Ela parava para arrumar a minissaia preta. Sempre que fazia isso, dava uma sambada, virava a cabeça com graça numa jogada leve dos cabelos para a direita e seguia em frente.

Eu sabia da voracidade dela. Era ativa demais. Contou-me certa vez que não segurava uma posição sexual por muito tempo. Se o homem lhe vinha por trás ela em pouco tempo já lhe queria pela frente, para em seguida forçar o macho a mudar novamente de posição. Parece que a cada cliente tentava o máximo de posições que conseguissem. Confessou-me que os homens nunca sabiam ao certo qual a posição preferida dela. O fato é que Lígia Mary escolhia na hora como é que ela queria gozar.

O fato é que eu não a via há muito tempo. Olhando agora acho que ela ainda tem um certo garbo, ainda era minha neguinha elegante de cintura fina. Mas não sei, creio que captei uma tristeza no olhar, um desanimo qualquer a lhe quebrar o viço.

Quando passou pela minha mesa, estava abraçada com o cara. Ela não me sorriu. Nem me olhou diretamente. Saiu olhando fixamente para frente, passou a bolsa dourada para a mesma mão direita que abraçava seu homem, liberou a mão esquerda exatamente enquanto passava pela minha mesa e então tamborilou com as unhas discretamente sobre a minha mesa. Gerou um sonzinho baixo, inaudível, mas eu pude ouvir.

Meu coração acelerou ao saber que agora chegava a certeza de que ela me reconhecera apesar da minha cara suja, minha barba grisalha por fazer _ aqueles dedinhos de unhas coloridas avisavam que eu ia encontra-la de novo.

Feliz, eu ia saber finalmente sobre a estória que me contaram quando do sumiço de Lígia Mary do bairro. Disseram em 2006 que ela entrara num motel com um sujeito que nem tão velho era, mas que sofria do coração o pobre. Disseram que o coroa bateu as botas durante a transa. Era um dia quente de derreter asfalto, mas ninguém soube ao certo se o motivo foi mesmo a falta do ar condicionado que acabou sendo a desgraça do muquifo onde se meteram.

Também falaram que ele não valia muita coisa. Que era casado e que naquele tarde gritava com alguém ao telefone enquanto estava a comer na mesa com Lígia Mary, gritava que o capataz havia de pagar por ter vomitado no seu carro novo e caro. O gordo gostava de se exibir e mostrar o poder do seu dinheiro. Para gente ver como a vida não vale nada. Na mesma tarde o tal gordo morre enquanto estava sendo cavalgado pela minha Neguinha.

Que a Neguinha era muito fogosa eu mesmo sei, e parece que ela extraia uivos de prazer do tal coroa, quando ele acabou sucumbindo aos seus movimentos frenéticos. Dizem que a Neguinha sumiu exatamente neste dia. Que saíra correndo do motel, sem pagar, sem notificar, sem prestar socorro. Deve estar se culpando até hoje, desde que sumiu na vida e veio parar nestas partes do Recife.

Eu queria mesmo era lhe dizer que uma vez comprovada o ataque do coração do tal coroa gordo, ela não tinha o que temer. Parece que antes de entrar no motel com Lígia Mary, ele tinha ingerido uns dois quilos de gordura almoçando no rodízio de carne logo ao lado do motel, onde marcaram o encontro.

Eu queria mesmo era dizer a ela que seu crime fora tão somente fugir sem prestar socorro. Que eu não queria vê-la complexada. Não foi o sexo e sim o coração do miserável que não prestava, porque tinha veias entupidas demais.

Que aquilo tinha sido muitíssima falta de sorte. Que passados esses anos todos; tenho eu agora, algumas fichas que posso apostar nela se ela deixar.